Um Torreão¹ de memórias


Era amor... E assim sendo, impossível de definição, pois ao defini-lo ele deixaria de o ser, por si só. Mas era amor. Na mais sublime doação da palavra, dentro das regras ditadas pelos costumes em que fora criada.

Havia mais que entrega, mais que a obrigação da lei... Havia a dedicação subserviente, ainda que totalmente aceitável por ela e pela maioria das mulheres do seu tempo. Seu corpo era maculado sob os lençóis do tabu e da timidez, mas sua dignidade, ao cair do sol, era publicamente desrespeitada por não ter em sua conduta, a postura dissoluta das chamadas “damas da noite”.

Os filhos viriam cedo (imposição do casamento), e a partir do primeiro rebento, não haveria mais como pensar nela mesma (Como se algum dia houvesse sido ofertado a ela, tal direito). Agora seria mãe e esposa devota... Embora não houvesse na terra, santo que merecesse sua devoção. A inocência notável podia ver pureza até nos olhos da maldade. O esposo, único homem a beijar seus lábios, era para ela a promessa da felicidade eleita. Ela gozava da graça de ter escolhido aquele a quem dedicaria sua vida e seu amor. Mas ele, que um dia fora perfeito aos olhos dela, e por tal razão lhe roubara o coração juvenil, pôde ensina-la sem pena, que a ingenuidade não passa pela vida sem pagar o exato preço.

Nos momentos mais difíceis, ela se pegava lembrando de uma vida pobre, de uma infância não vivida, dos dias sem comida à mesa, e da humilde casa, onde em noites de chuva, ela fechava os olhos para sentir o carinho gélido da água que escorria do teto tão frágil, que somente a candura de uma criança não suspeitaria dos riscos aos quais estavam expostos. Só assim, somente diante de lembranças tão duras, conseguia seguir adiante, tentando ver que de algum modo, os dias atuais eram melhores.

Parte de sua infância e adolescência fora vivida em colégio interno, onde o contato com a família era ínfimo, pois seus outros oito irmãos fora daquelas paredes precisavam ainda, de mais atenção que ela. Precisavam de cuidados que ela ali já teria, rodeada por freiras que a preparava para se tornar uma mulher exemplar. Até hoje, ela não sabe dizer se aquela solidão assistida foi mesmo melhor que estar ao lado daqueles que lhes fazia tanta falta. Mas, como uma boa menina, deu o melhor de si, sem reclamar em voz alta... Sem que suas lágrimas de saudade fossem testemunhadas.

Ela também gostava de recordar do primeiro encontro, aquele exato instante em que seu coração disparou e ali, se dera conta de que havia encontrado seu futuro marido. Belos dias vividos desde então. Uma curta fase de felicidade que será eternamente lembrada, a fim de apagar o longo período em que lhe roubaram a fé nos sonhos... Doces sonhos que foram desfeitos pela realidade imposta.

Vinte anos e seis filhos depois, ainda muito jovem, posto que se casou ainda bem moça, ela ficou viúva. Ele partiu vítima da embriaguez. Vício que atormentou a família por tanto tempo, tirando a paz e o sossego do que poderia ter sido um lar feliz. As inúmeras amantes que ela chegou a conhecer, inclusive uma que foi colocada dentro de sua própria casa como amiga leal, teria se tornado um fardo relevado pela personalidade complacente, que aprendeu com a mãe, que homens têm necessidades diferentes, e mesmo que aquilo lhe matasse por dentro, teria sido uma carga menor que vê-lo dependente do álcool, herança das noitadas com os amigos em bares e cabarés.

Muitos anos se passaram desde então. Muitas dificuldades enfrentadas, mas com seis filhos, nunca mais ousou amar novamente. O tempo transformou sua carne frágil em armadura, fechou seu coração para outras ilusões e encarou batalhas que a grande maioria das mulheres de hoje, seriam incapazes de enfrentar sozinhas. Ela é minha heroína preferida. Meu ídolo na terra. Suas histórias me inspiram e sinto o amor de filha brotar cada vez mais intenso quando sento para ouvi-las.

A garganta se aperta, sinto o peito acelerar com o intenso desejo de que ela pudesse ter sido feliz de verdade um dia. Ela merecia ter sido amada. Mas a vida é irônica mesmo. O afeto de um homem escolhido, não foi o bastante para apresenta-la a felicidade, mas, os filhos, deram a ela todas as alegrias esperadas. Ela sabe o quanto é amada hoje, e que nunca mais estará sozinha. Sabe o quanto é admirada e respeitada, e ainda que seu coração se entristeça e seus olhos denunciem sua dor pelo amor que estava morto ainda em vida, hoje ela sabe que valeu a pena resistir às lutas que travou em seu caminho. O sentimento dos “homens” pode ser frágil, inconstante, até burro, mas amor de filho quando reconhece a graça de ter os pais que tem, é igual ao amor de mãe. É incondicional... É para sempre.




 Gil Façanha



Texto BASEADO em fatos reais.

¹. Torreão é o nome do lugar onde minha personagem viveu os primeiros anos de casada. Foi lá onde a história teve início.


“Torreão é uma serra situada no município de João Câmara, a 80 km da capital (Natal/ RN) e pertencente à região do Mato Grande, a serra do Torreão é a sentinela mais avançada do grande planalto da Borborema, no sentido norte-oriental. É um iceberg solitário (...)”

Fonte: http://www.cmjoaocamara.rn.gov.br/historia_serra_do_torreao.php)

Comentários

Amanda Cerqueira disse…
Vida sofrida hein Gil?!
Mas nada é em vão,tudo poderia ser diferente,no entanto,não teríamos o privilégio de conhecer vc,porque vc não existira neah?! rsrs
Acho que no fim,as coisas acontecem como devem acontecer mesmo.E que bom que foi assim,porque para uma mãe não há felicidade maior que ver todos os seus filhos bem e felizes,porque a felicidade deles é a felicidade em dobro que ela sente.Para sua mãe,certamente,deve ser muito bom te ter como filha,deve sentir muito orgulho.
Adorei o texto;a vida não é feita só de felicidade,todos passamos por perrengues e todas nossas dificuldades nos servem como experiência,assim,a cada dia aprendemos mais,e assim vamos conquistando nosso espaço no mundo,fazendo a diferença.
Bom Gil,é isso! rs
Adorei ter passado por aqui novamente,estava com saudade,estive meio ausente,mas já voltei,afinal,férias!
:D
Boas festas,beijos e até mais.

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